
21 mar Democracia, um livro aberto
“No meio do caminho tinha uma pedra/Tinha uma pedra no meio do caminho”. “Eles passarão/Eu passarinho”. “Tudo vale à pena quando a alma não é pequena”.
Atire o primeiro meme de Internet quem nunca topou com esse tipo de citação ao descer a barra de rolagem do Facebook. Mas qual o real significado dessas evocações? As poesias de Carlos Drummond Andrade, Mário Quintana e Fernando Pessoa têm suas essências ampliadas ou reduzidas quando viralizam em redes sociais?
Michel Laub já escreveu que uma das formas de matar um escritor é vulgarizar o registro original de suas ideias, transformando-as em autoajuda. Para o autor de “Diário da Queda”, antes de serem justas homenagens, as citações de ocasião, radicalmente tiradas de seus contextos, são um desserviço à literatura. Obras densas e profundas acabam reduzidas a meia dúzia de slogans.
O que vale para a literatura vale também para o pensamento político. A repetição vazia de ideias poderosas conspira para o enfraquecimento delas.
“Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais que têm sido experimentadas de tempos em tempos”. A famosa frase de Churchill costuma ser lembrada quando se quer enaltecer os benefícios da participação popular. Se determinado desacordo não tem solução satisfatória na democracia, significa que não teria em nenhuma outra forma de governo conhecida. Que prevaleça a vontade da maioria, pois.
O problema dessa abordagem é que ela reduz o campo de abrangência da ideia original. Parte do princípio de que a democracia, além de ter uma aptidão biônica de resolver qualquer tipo de impasse, deve sempre orientar-se pela vontade majoritária, mesmo que o resultado seja imperfeito. Indiretamente, a famosa frase é lida como derivação de outro slogan: “a democracia é a ditadura da maioria”.
O que essa conversa deixa para trás é o fato de a vontade popular nem sempre se prestar a resolver todo e qualquer tipo de conflito. Também passa por cima da noção de que o critério majoritário não é absoluto e nem desejável o tempo todo.
Hoje se fala cada vez mais nas chamadas “guerras culturais”, que ocorrem quando ideias morais entram em disputa no campo político e judicial, sem que o Estado possa conciliá-las, a não ser pela exclusão do pensamento rival. A questão não é arbitrar quem tem razão numa disputa binária, valorada pelo número de simpatizantes. A questão é que só a democracia permite exigir, de maneira institucionalizada, alguma medida de proteção às diferenças, sobretudo se elas forem contramajoritárias.
A transformação em clichê da frase de Churchill subtrai dela outras dimensões possíveis, como a insinuante constatação de que na democracia, e só nela, a tolerância é elevada a atributo político, apesar da vontade da maioria.
Os juristas não estão fora do problema. Muito pelo contrário.
Uma das grandes virtudes do processo de redemocratização do país é ao mesmo tempo um dos seus maiores cacoetes. Ao longo dos anos, a defesa incondicional da “liberdade de expressão” — como reação direta ao seu antecedente histórico, um Estado de Exceção marcado pela censura — foi esvaziando o real significado do direito de se manifestar. Isso porque faltou atenção dos juristas ao correlato “dever de ouvir”, ônus quase nunca mencionado.
Qual o nosso condicionamento cívico para o exercício de uma escuta minimente empática? Absolutamente nenhum. O que o Direito nos diz sobre o momento imediatamente posterior à emissão do discurso? Nada além de “peça uma indenização por danos morais se você se sentir ofendido”, como se tudo se resumisse à apuração de suscetibilidades.
Como o slogan da “liberdade de expressão” incentiva todos a falar e ninguém se propõe a ouvir, acabamos engaiolados na famosa “caixa de ressonância da democracia” — outro slogan — sob insuportável polifonia, na qual todas as falas tendem a se anular, passando o inevitável sentimento de que o debate público é um jogo de soma-zero.
Da mesma forma que, para não cair em artificialismos, você tem que se expor à literatura a fim de contextualizar adequadamente a pedra de Drummond e alcançar a metáfora, é preciso se submeter cotidianamente aos valores da democracia para entender que ela, mais do que uma forma de governo, é uma ética individual de respeito, alteridade e gosto pela diferença.
Se não for assim, tal como acontece com grandes obras, tudo se fragmenta no Facebook.
Mas a relação não para aí.
Ler um romance com personagens complexos, que não são o tempo todo bons, mas também não são o tempo todo maus, exige de você alguma disposição para se transpor ao universo deles, entender seus conflitos e especular sobre suas ações. Para isso, é preciso sair do eixo mocinho-bandido. Ainda que você não os entenda, ainda que você os julgue pelo que pensam e fazem, ainda que você não goste de todos eles, a história só prosseguirá se a sua imaginação lhes der corpo e voz.
Há certa beleza no gesto do leitor que se deixa penetrar por sentimentos e contradições alheios, num constante esforço de escuta e às vezes até mesmo de compaixão.
O mesmo para a democracia, que depende de idêntico engajamento.
No fundo, viver em democracia é estar nesse livro.
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